A Violência Nossa de Cada Dia

Ontem, quando voltava para casa ao anoitecer, vi um homem sendo preso. O carro da polícia estava estacionado em frente ao ponto de ônibus – de onde retiveram e levaram, à força, o homem que protestava e tentava se desvencilhar. A rua inteira parou para observar, cena típica. Ao entreouvir comentários alheios, descobri que o individuo tentara roubar a mochila de um passageiro do ônibus que ainda estava lá parado.

Ao redor, pessoas sentadas nas mesas dos bares, ainda com os copos de cerveja na mão, acompanhavam o episódio como espectadores, balançando a cabeça com reprovação enquanto espetavam mais um batata-frita. Ao observar a situação, pensei em como a violência não nos assusta mais – causa curiosidade, mas não surpresa; provoca indignação, comentários revoltados, vozes alteradas e tapas na mesa, mas não é vista com estranhamento ou choque, não mais.

Hoje, quando saí de casa, notei manchas vermelhas no chão da calçada. Elas formavam uma linha serpenteante entre as paredes e o meio-fio. Sangue. Naquele mesmo lugar, provavelmente não muitas horas antes, alguém sangrou pelos quarteirões que me levam da minha casa até a academia. Uma irônica releitura macabra de João e Maria. Rastros de sangue atravessando a rua, gotas rubras respingadas no chão de pedra portuguesa. Soa até poético. Fui seguindo as marcas com os olhos, até que cheguei ao meu destino. Entrei pela porta de vidro, enquanto, do lado de fora, o caminho sangrento continuava seu percurso, indefinidamente, formando um tapete por onde centenas de vidas iriam pisar sem perceber.

Esses fatos me fizeram refletir sobre a proximidade que a violência se encontra de nossas vidas cotidianas. Sempre imaginei a violência como um monstro que vaga pelas ruas, e de vez em quando, bufa bem perto do nosso pescoço; outras vezes, chega a esbarrar em nossos corpos e leva embora um aparelho eletrônico, uma quantia em dinheiro, uma joia, um bom-humor, um sorriso ou outras coisas bem mais graves que nem sequer preciso citar.

Porém, por fim, me dei conta de que a violência na verdade é mais como um plano de existência conjunta, inseparável do mundo em que criamos nossas rotinas – ele coexiste no mesmo tempo e espaço. Algumas vezes, ele se faz evidente, outras vezes se mantém recluso àqueles lugares por onde a gente evita passar, mas nunca está estagnado, é indissociável da urbanidade assimétrica em que vivemos e, inclusive, dela se alimenta.

Esta tarde, quando passei pelo ponto de ônibus onde um cara foi preso ontem, havia meia dúzia de crianças jogando bola. Quatro chinelos empilhados marcavam as laterais do gol. As vozes delas ecoavam até a esquina, onde o último pingo de sangue tocou o asfalto.