‘Bite it, you scum!’

O doentio mundo paralelo de GG Allin segue assombrando o Rock N Roll.

Já antes dos primeiros acordes da música de abertura, percebe-se que o clube Space and Chase de Nova York não assistirá um show comum. A banda entra silenciosa no palco, e o vocalista usa uma indumentária de palco pouco usual: botas de vaqueiro, mais nada. Sem avisos, sem preâmbulos, começa a primeira canção. O show fica não mais do que alguns segundos em cima do palco: antes mesmo de terminar de cantar a primeira estrofe, o vocalista salta em direção à plateia e, ato contínuo, soca o rosto de um dos membros da audiência. O som seco do microfone contra o rosto desprotegido encaixa macabramente com o tempo da canção. Momentos depois, alguém é arrastado pelos cabelos, e o cantor começa a esfregar o pênis no rosto de sua vítima antes que alguém a arraste para longe dali. Em segundos, um enorme espaço se abre na primeira fila, com a audiência procurando ficar o mais longe possível do homem que dança de forma insana na frente do palco. Antes do fim do segundo refrão, esse homem terá defecado no chão, ingerido parte das fezes e esfregado o resto no próprio rosto e coxas. Quase ao final da canção, ele avança sobre o espaço reservado ao público – e as pessoas que normalmente se espremem na frente do palco agora se aglomeram no fundo do recinto, fugindo como podem de um personagem que está completamente fora de controle. Antes do final da terceira música, os donos da casa encerram abruptamente o show, com policiais surgindo para prender o vocalista e tentar colocar alguma ordem na enorme confusão.

GG Allin costumava chegar um tanto quanto esgotado ao fim de seus shows
GG Allin costumava chegar um tanto quanto esgotado ao fim de seus shows

Muitas pessoas gostariam de poder acreditar que histórias como essa são obras do exagero, lendas urbanas que se espalham no boca a boca, e até mesmo que o personagem dessas fábulas do grotesco nunca teria existido. Talvez a negação até funcionasse, não tivessem esses eventos sido registrados em vídeo, provando acima de dúvidas que GG Allin existiu e que seu legado repugnante não é fruto de relatos distorcidos e imaginações doentias.

Nascido na pequena cidade norte-americana de Lancaster, recebeu o nome Jesus Christ Allin de seu pai, que alegou ter sido visitado por um anjo que apontou o jovem como um novo Messias. Seu irmão mais velho Merle (companheiro de banda de Allin por muitos anos) não conseguia pronunciar direito “Jesus” e acabava chamando-o de “jeje”, surgindo aí o apelido que o músico levaria por toda a vida. A família Allin morava num furgão sem água e luz, e seu pai proibia qualquer conversação após o escurecer, além de ameaçar matar toda a família várias vezes.

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A imprensa sempre esteve à vontade para elogiar o talento musical de GG

Desde cedo um desajustado que praticava todo tipo de arruaça e ia para a escola usando roupas de mulher, GG Allin encontrou na música punk um caminho natural a seguir. Começou como baterista, e sua primeira banda foi o Malpractice em 1977. Pouco depois, uniu-se ao The Jabbers, primeiro como baterista e depois como vocalista, e com eles fez suas primeiras gravações. Nessa época, GG era uma figura relativamente normal e chegou até a se casar com uma namorada dos tempos de escola. Mas Allin foi mergulhando nas drogas, seu casamento fracassou e o The Jabbers não resistiu à excentricidade crescente de seu vocalista, encerrando atividades em 1984.

A partir daí, a trajetória de GG Allin se torna uma das mais doentias de que se tem notícia. Tocou com várias bandas e escreveu um sem-número de canções, registradas em incontáveis lançamentos – mesmo os mais devotados fãs ignoram o número exato de itens existentes entre vinis, CDs, fitas cassete e vídeos. Suas letras quase invariavelmente falavam de assuntos repugnantes para a maioria, e seus shows eram bizarros, para dizer o mínimo. Sempre drogado, Allin agredia o público, atacava mulheres que estivessem na platéia, evacuava no palco, destruía o que encontrasse na frente e não raro causava sérios danos a si mesmo. Em mais de uma oportunidade, o vocalista saía do palco direto para o hospital – em um evento que se tornou célebre, quebrou parte dos próprios dentes a golpes de microfone.

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Em paz, GG Allin prepare-se para sua última viagem

Os shows quase sempre eram encerrados prematuramente, ou pelos donos do lugar ou pela polícia. Allin foi preso inúmeras vezes – na mais grave delas, ficou dois anos detido por ter submetido uma mulher a tortura sexual, acusação que sempre negou alegando ter agido com o consentimento da vítima. A vida de Allin rendeu um documentário, “Hated”, dirigido por Todd Philips. A película acabou sendo uma espécie de canto de cisne de GG Allin, que morreu de overdose em junho de 1993, antes da conclusão do filme. Seu enterro foi um evento digno da vida que GG levou. Vestindo um tapa-sexo e jaqueta de couro, o cadáver (que estava sujo de fezes e, a pedido do irmão Merle, não foi lavado antes da cerimônia) tinha seus genitais apalpados e bebidas eram derramadas na sua boca pelos amigos que foram prestar sua última homenagem.

O fim de GG Allin não será surpresa para qualquer um que conheça seus hábitos ultrajantes, mas muitos hão de se admirar com o status de lenda que o músico atingiu em vida e que talvez até tenha se fortalecido depois de sua morte. Aos poucos, foi crescendo um verdadeiro culto underground a GG, com várias bandas fazendo releituras de suas músicas e um comércio frenético de itens raros, que chegam a ser vendidos por centenas de dólares em sites como o eBay. A banda Murder Junkies (última a acompanhar GG e liderada por seu irmão Merle) segue fazendo shows, e eventos são organizados no mundo inteiro em homenagem a essa verdadeira lenda do submundo.

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GG Allin and the Murder Junkies, em um ensaio fotográfico casual

Em 2003, Florianópolis foi palco de um desses eventos. Organizado por estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), “Dez anos sem GG Allin” foi uma semana multimídia que envolveu exibição de filmes (“Hated” entre eles), palestras de figuras do submundo como o cineasta trash Peter Baierstoff, peças teatrais e um show de encerramento, em que cinco bandas fizeram o seu melhor (ou pior) para homenagear no palco alguém que fez dele um veículo para a infâmia. Como nota cômica, a estratégia de divulgação. Membros da organização foram até o programa televisivo do deputado estadual Cesar Souza e passaram alguns minutos contando no ar a história de GG Allin, enfatizando o posicionamento “contra as drogas” do músico (que inclusive teria, segundo os entrevistados, uma ONG para apoiar músicos afundados no vício) e sua postura “pacifista” diante do rock e da vida. Coerente com a trajetória de GG Allin, de certo modo.

Publicado originalmente em 2006 na revista experimental Sextante, de alunos de Jornalismo da Fabico-UFRGS