A vingança de Sue Mingus

Quando eu entrei nessa de gostar de Jazz eu já imaginava que seria um terreno muito vasto para explorar. Eu sabia que antes de me considerar  um fã de Jazz teria que procurar muitos artistas e álbuns, além de ler muita coisa a respeito. Nos últimos anos venho fazendo um pouco de cada uma dessas coisas e já penso diferente: o terreno vasto é um parque da Disney do tamanho da África, e eu sou um menino de 5 anos.

Há um tempo atrás eu estava me dedicando a reunir álbuns de grandes nomes, com a finalidade de experimentar e conhecer a música de cada um deles. Um destes álbuns foi Revenge! de Charles Mingus, que adicionei no Deezer. Trata-se de uma seleção de concertos gravados em Paris, durante uma tour que ele e seu conjunto realizaram em 1964. É uma obra excelente e uma daquelas provas que se pode ouvir um álbum por toda a vida.

A riqueza das peças e a beleza intrigante da capa me levaram a pesquisar a origem do álbum. Por algum motivo pensei que se tratava de um álbum político ou étnico, já que o título e o rosto de Mingus, coberto por uma jalaba, davam boas margens sugestivas para isso. Sim, pode-se dizer que é um álbum político, mas não da forma que pensava.

Revenge - Charles Mingus - Capa

A ladra de discos

No site oficial de Charles Mingus você pode conhecer o relato de Sue Mingus, viúva do grande baixista. Ela conta que, acompanhando todas as tours de marido ela sempre se dedicou a procurar nas lojas de discos por gravações piratas ou não autorizadas das composições de Mingus e seu sexteto. Em Paris, como ela conta, foi a primeira vez que ela foi pega roubando um disco de uma loja.

The first time I was caught stealing records was in Paris in the autumn of 1991. I’d passed through the front door of the city’s largest record store and was standing outside on the Champs Elysees when three store guards sprang out of nowhere and surrounded me. They were waving walkie talkies and shouting in French to someone inside the store. I had about 20 stolen Mingus CDs under my arms

Sue fazia isso para defender os direitos autorais de seu marido. Segundo seu relato naquela época era muito usual as pessoas gravarem sem autorização as apresentações do sexteto e reunirem em discos algumas dessas apresentações para depois venderem como discos legítimos. Pensando como um fã isso poderia ser algo genial, já que traria a tona gravações únicas que apenas algumas pessoas puderam ter o privilégio de ouvir. Por outro lado, o dinheiro arrecadado com elas nunca seria visto pelos músicos e compositores originais.

Para combater a pirataria sobre as composições de Charles ela decidiu , como ela mesma disse, “continuar a luta em um nível mais alto”. Ela reuniu gravações ilegais de um dos dois concertos realizados em Paris e através de um novo selo, o Revenge Records!, lançou o Revenge!

Charles e Sue Mingus
Charles e Sue Mingus

O Álbum

Revenge! é composto por seis números que foram apresentados na Salle Wagram, no dia 17 de abril de 1964. O concerto contou com  Eric Dolphy (sax alto, clarinete baixo e flauta), Johnny Coles (trompetes em So Long Eric), Clifford Jordan (sax tenor) Jaky Byard (piano), Dannie Richmond (bateria) e, é claro, Charles Mingus (contrabaixo); e foi considerado o ” lendário concerto de Paris” de Mingus.

Segundo o que conta o site, tal concerto é muito confundido com outro que foi realizado um dia depois, no Theatre des Champs Elyseés que também teria sido amplamente pirateado, através da Prestige Records, um selo americano de Jazz, que mais tarde foi vendido para a Fantasy Records e hoje integra a Concord. Naquela época tanto o sexteto de Mingus quanto outros músicos sabiam que algumas pessoas estavam indo aos concertos para gravarem as apresentações, mas os músicos não podiam fazer nada a respeito.

Por mais errado que isso tenha sido, pessoalmente tenho muito a agradecer a estes pilantras. Se tivesse vivido naquela época eu provavelmente teria sido um deles, não com a finalidade de fazer grana (talvez), mas distribuiria livremente o resultado das gravações entre outros fãs. No final das contas todo o esforço não parece ter compensado: hoje você vai poder conhecer cada faixa e baixar na internet a qualquer momento (nem preciso dizer como né?).

Os números apresentados também guardam boas histórias. Todo gênero de música puramente instrumental é fascinante pela enorme margem de imaginação que proporciona ao ouvinte. Sem a presença de letras cantadas é possível imaginar inúmeros significados para cada música, assim como muitas sensações e ambientações podem ser experimentadas, não importando muito quantas vezes você ouviu a faixa. Tudo bem que alguma canção possa ter assumido determinado papel emocional para você (não importa quando nem onde, sempre que escuto Milestonescomeça a chover – literariamente, claro), mas a princípio você sempre tem liberdade pra ditar o que se passa na sua cabeça quando os acordes começam a se desenhar, principalmente quando se trata de Jazz instrumental. Ainda assim creio que muitos já tentaram buscar pelo significado dos títulos das músicas de Jazz, e descobrir o que os compositores queriam dizer com isto.

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Mingus fumando um bombaiano

1. Peggy’s Blue Skylight

Até pouco tempo eu não sabia o que era claraboia. Quando me deparei com o título da faixa que abre o álbum não sabia dizer do que se tratava em bom português, mesmo quando li sobre sua composição: Charles estava na casa de sua amiga, Peggy Hitchcock, quando compôs o tema.

“I wrote it on the piano at Peggy Hitchcock’s house. We were friends. She wanted to take the blue plastic shield from the cockpit of a fighter plane and replace her skylight with it so the sky would always be blue. The government wouldn’t let her do it.” (Mingus quoted in Charles Mingus: More Than a Fake Book, Jazz Workshop, Inc., 1991, distributed by Hal Leonard).

Um dia desses minha namorada falou a palavra “claraboia” e eu perguntei se era algo usado em cursos d’água. Ela me explicou e então percebi que ideia genial teve essa tal de Peggy. Gostaria de ter uma claraboia azul no meu quarto também.

2. Orange Was the Color of Her Dress Then Blue Silk

Acredita-se que esta faixa tenha alguma relação com  a música Song with Orange, que Mingus teria composto para uma TV Show. A musica teria sido criada para contar  história de um compositor que atende o pedido de uma jovem rica, para que composse uma música dedicada ao seu vestido de cor laranja. Baita viagem né? Viagem mesmo foi o que aconteceu no começo desse número.

Antes da apresentação do sexteto um circo russo havia se apresentado no Salle Wagram, e em virtude dessa apresentação o palco estava “um tanto” mais alto do chão. Jhonny Coles, o trompetista do sexteto, teria contado vinte e dois passos do chão. Como conta a história, Coles só teria conseguido executar a faixa So Long Eric, pois um tempo depois de ter tocado um solo começou a sentir algumas dores, resultado de algumas úlceras, e procurou os bastidores atrás das cortinas. Sim, ele caiu e desceu todos aqueles vinte e dois passos de uma maneira trágica. Isso aconteceu no começo da faixa.

Não se sinta culpado, eu também ri da história. O resultado, no entanto, não foi engraçado para Coles, que foi hospitalizado e só acordou três dias depois. Ao vê-lo o médico teria dito “É bom ver você vivo”. Coles fez uma cirurgia e não pode seguir na tour.

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Coles se fodeu

3. Meditations On Integration

Esta talvez seja a melhor música de todo o álbum. Claro que cada uma tem suas peculiaridades, mas esta tem uma força especial. O tema é frio mas estranhamente animado, algo palpitante e aventureiro que quase ninguém percebe. Uma cena perdida em um filme de ação. Trata-se de uma variação de Meditations que Mingus escreveu para as pessoas que estavam sendo segregadas in the South (não saberia dizer se Sul dos EUA ou África do Sul). Ele brincou com a ironia de que “as pessoas não tinham fogões ou torneiras à gás, mas já tinham cercas elétricas”. Em nome dessas pessoas escolheu três títulos para o tema: Meditations On Integration,  Meditations for a pair of wire-cutters e Meditations on inner peace.

4. Fables of Faubus

A faixa é conhecida do álbum Ah-Um e é endereçada ao então Governador do Arkansas, Orval E. Faubus, que em 1957 ordenou que a Guarda Nacional evitasse que um grupo de crianças negras entrasse na Escola de Ensino Médio de Little Rock. Mingus e o baterisa Dannie Richmond teriam criado versos para entoar durante a música, mas a Columbia Records impediu-os de gravar. Nesta apresentação parece ser possível ouvi-los cantando (ainda não consegui).

Oh, Lord, don’t let ‘em shoot us!
Oh, Lord, don’t let ‘em stab us!
Oh, Lord, don’t let ‘em tar and feather us!
Oh, Lord, no more swastikas!
Oh, Lord, no more Ku Klux Klan!
Name me someone who’s ridiculous, Dannie.
Governor Faubus!
Why is he so sick and ridiculous?
He won’t permit integrated schools.
Then he’s a fool!
Boo! Nazi Fascist supremists!
Boo! Ku Klux Klan (with your Jim Crow plan)
Name me a handful that’s ridiculous, Dannie Richmond.
-Faubus-Rockefeller-Eisenhower
Why are they so sick and ridiculous?
Two, four, six, eight: They brainwash and teach you hate.
H-E-L-L-O–Hello.
(From Charles Mingus: More Than a Fake Book.)

5. So Long Eric

O tema teria sido criado para convencer Eric Dolphy a permanecer no sexteto depois da tour. O saxofonista planejava abandonar o grupo e passar a viver na Europa. A musica seria no entanto um adeus manhoso, uma vez que o grupo sentiria a ausência de Eric. De fato sentiram ainda mais: Dolphy veio a falecer meses depois.

6. Parekeriana

Trata-se de uma homenagem a Charlie “Bird” Parker, que em algumas gravações é intitulada Ow ou Dedicated to a Genius. Segundo o site musicologista Andrew Homzydiz tratar-se de uma colagem de temas bebop, algumas de Bird e outras que, creio eu, teriam sido conhecidas por sua execução. No artigo ele identifica mais de oito temas. Já eu aqui sou apenas um garoto que suja as calças de vez em quando.

Espero que tenham gostado, apesar da postagem quilométrica. Cuidado com os degraus.