De segunda à sexta

Parecia um fim de tarde normal. Cinco horas. O sol descia e fazia do Parque Solón de Lucena (JP) um cartão postal frequentado por trabalhadores e estudantes em fim de expediente. Outros começavam ali as suas rotinas diárias. Ônibus lotados. “O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas, pretas, amarelas”, diria Drummond, magnificamente. Pernas que não param. Carros que não cessam os motores. O trânsito grita. A lentidão vai tomando conta das avenidas e neste momento a impressão é que todos os sinais resolveram avermelhar de vez.

Os semblantes estão cansados. Os olhos cerrados quase se fecham nas cadeiras do coletivo. Até os que estão de pé encostam seu rosto no apoio das mãos. Só querem se apoiar em algo. Deixar que o corpo amoleça um pouco. E relaxe. Marias e Josés com suas passagens em mãos lotam os pontos de ônibus. Exaustão. Coragem. A contradição marca o que podemos chamar de obrigação. Seja ela boa ou ruim, a maioria está ali para viver. Mesmo morrendo um pouco. De cansaço. De sono. Até a fome já começa a chamar.

Todos saturados, cabeças cheias e corpos se esvaziando em desejo de dormir. Atentar para as pessoas nesse momento é a única atividade que ainda é possível exercer. Senhoras procuram o pequeno banco do ponto de ônibus. Grande espaço já está ocupado por jovens conectados nos seus smartphones, pouco dispostos a prestarem atenção em quem circula ao seu lado. O pipoqueiro aumenta o seu lucro ao mesmo tempo em que também começa a se preparar para partir. Vai puxando o seu carrinho e Deus sabe onde ele vai parar. Os motoristas estão ainda mais velozes. Estão apressados pelo fim do expediente. Justo! Mas ainda tem mais uma viagem na lista. Correm dos pontos. Sorte de quem consegue fazer sinal de fumaça para pararem no lugar correto. Cobradores cochilam. Passageiros os acordam. E assim todos se acomodam da forma que conseguem.

A desconfiança é a base de um cidadão cotidianamente marcado pelos donos da insegurança. É difícil permanecer estático. O cansaço grita, mas o medo esperneia. É inquietante não confiar na própria sombra. Meninos nos rodeiam pedindo dinheiro para um lanche, para viver. Nos abordam no susto e no ímpeto de receberem um sim.

“Só tenho o dinheiro da passagem, me desculpa”, digo e observo-o ao mesmo tempo. Tento entrar no seu mundo interior. Permaneço calada. Mas meus pensamentos borbulham. O que os olhos veem, o corpo, a alma e o coração desconfiam. E sangram simultaneamente. É duro o mundo da inevitabilidade. Do costume que não foi você que pediu pra ter, mas o mundo te impôs da pior maneira: pela experiência ruim.

Chega, enfim, o momento em que todo o meu interior se rotula de desumano, descrente, preconceituoso. Então começo a aprofundar nos meus próprios pensamentos. Enquanto isso, enquanto meu eu lírico se decepciona com seu íntimo, o garoto que antes passou com uma receita de remédio pedindo dinheiro para comprá-lo, agora é afrontado por um rapaz ainda mais desconfiado da vida humana do que eu. A discussão começa, todos viram suas cabeças num esforço que antes foi feito apenas para checar o número do ônibus.  O cara desconfiado fala em voz alta:

“Vá trabalhar! Eu já estou te observando há alguns dias… Saia daqui!”

O garoto tira um canivete do bolso, se aproxima de quem o afronta, balbucia algumas palavras e sai. Enquanto atravessa a rua, ele grita:

“Da próxima vez, gaste todo o seu salário em balas (de fogo).”

Ninguém diz mais nada. Os ônibus vão chegando e aquela cena parece ser corriqueira pra quem por ali passa todos os dias. Mais um pedindo dinheiro, mais um afrontando. Assim a gente vive nosso fim de expediente: passando por altos e baixos cada vez mais fáceis de encontrar. As luzes da cidade se acedem. É hora de dormir. Um novo dia irá começar. Um mesmo sol no céu, um mesmo pé no chão. Levantas-te! É hora de viver novamente.