Foto: Gui Benck

Diário de Bordo: Festival Spiroway 2014

No feriado da Páscoa representei o La Parola no festival Spiroway. Foi muito bom. Tempo para ouvir bom som, aproveitar o momento sem se preocupar com a correria cotidiana e curtir a tranquilidade da natureza. Resolvi fazer uma cobertura jornalística um pouco diferente, em primeira pessoa. Como o Spiroway defende a ideia de abrir a mente e pensar fora do convencional, nada mais justo que a escrita seja livre, sem consulta de anotações e dados específicos, apenas com o fluxo da mente. Portanto, deixo aqui o meu relato pessoal, parcial e subjetivo, desejando vida longa aos festivais de música, cultura e arte!

PS: Todas as fotos que ilustram a matéria e que formam a galeria lá no final são do Gui Benck.

Shiva

Estávamos em algum lugar perto de Nova Prata, para fora da cidade, quando o Spiroway começou a fazer efeito. Lembro que falei algo como “me sinto cansado da viagem, preciso sentar um pouco…” E de repente fomos cercados por um rugido que, não, não era terrível caso você tenha reconhecido de onde surgiu o início deste texto. Era lindo. E em vez de morcegos que desciam do céu, o que estava em nossa frente era uma constelação visual e sonora indescritível.

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Há pouco havia escurecido e há pouco havíamos chegado e terminado, com algum suor, de montar o nosso acampamento. Já na segunda hora de festival já podia notar uma aura diferente. O Spiroway, festival que aconteceu durante o feriadão de Páscoa no Parque Antônio Ghellere, em Nova Prata (a capital brasileira do blues, segundo uma galera) já tinha esse propósito de ser um evento de transformação de mentes, de pensar diferente, abrir a visão, comemorar a chegada de uma nova era e coisa e tal. Confesso que fui muito mais pelo rock, mas acabei percebendo que o Spiroway foi bem mais.

A previsão do tempo indicava que choveria mais ou menos uns 50 milímetros nos dos primeiros dias de festival. Como de costume, a meteorologia foi imprecisa, e a sexta-feira permaneceu seca e estrelada. Ou havia uma mística responsável por essa virada de tempo. Falando em mística, meu celular morreu na chegada, mesmo com a bateria cheia. Isso acabou com todas as possibilidades de fazer uma cobertura em tempo real, postar fotos no Instagram e ficar twittando durante o festival. Por sorte, nada disso estava em meus planos e mandei um foda-se para o celular.

O clima estava ótimo e quando terminamos de organizar o acampamento o som já estava rolando. O palco era em uma descida, no estilo anfiteatro e na primeira ida encontrei um camarada de Nova Prata pregando a palavra. Ajudei ele, segurando uma foto do Jimi Hendrix, que foi pregada em uma cerca. Quando cheguei lá já estava no palco a terceira banda, Casa Muscária, responsável por fazer cair a casa de muita gente. Eu estava sentado, cansado, quando escutei aquela hipnotizante introdução de Pigs. Precisei de um esforço para levantar e me equilibrar na grama desnivelada, depois precisei de um esforço para me manter na realidade, o que foi um insucesso. Big man, pig man, ha ha charade you are! Baita banda, criou uma euforia coletiva gigantesca naquela noite, quase um transe.

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Na sequência teve um show da Cattarse, a primeira banda a tocar A hora e a vez do cabelo nascer, a música mais tocada no festival (contei quatro covers, todos justos). Depois desse show, subi até o bar de cima pegar uma cerveja. Um ponto positivo é que era relativamente rápido comprar a ficha no caixa e trocar no bar, bem ao lado. O difícil foi só quando eu precisei fazer muita força no pensamento para que uma mulher em minha frente parasse de se transformar em uma lagosta. E que os papéis no balcão do bar parassem de pular freneticamente. Aquele jogo de luzes que o pessoal da organização preparou teve coisas desse tipo, mas foi legal.

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Se as bebidas chegavam rápido, a comida nem tanto. Mas o pessoal da cozinha maluca compensava com criatividade. Não vi pessoas irritadas quando demorava um pouco para pizzas e sandubas ficarem prontos. O pessoal era tão figura que valia a pena ficar um pouco olhando eles trabalharem. Sempre acontecia algo. E falando em sanduba, foi justamente lá que comi o melhor sanduba de todos, mesmo ele sendo um pouco diferente “Cara, eu tenho uma ficha pra um sanduba, mas queria saber qual era daquele arrozinho com queijo e calabresa que tá ali na panela”, perguntei. Sem me responder, o cozinheiro de mustache serviu um prato do arroz maravilha e largou na minha. “Mas minha ficha é de sanduba”, respondi. “Mas isso é um sanduba, o prato volta limpo?”. Fiquei um pouco sem reação, sem entender, mas agradeci pelo ótimo “sanduba” e saí de lá rapidinho antes que ele mudasse de ideia.

A essas horas já estava tarde, mas só na minha cabeça. Quando me falaram as horas demorei para acreditar que eram recém dez da noite. Deu tempo ainda de ouvir a Libertino, a Gypsy Ray, que fez um tributo especialíssimo ao Hendrix e ao Vaughan, e a The Loon’s of Moon Band. Ainda na mesma noite, longe do palco e perto do bar, uma galera ficou tocando um blues até altas horas da madrugada.

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Brahma

O segundo dia de acampamento foi quando tudo iniciou de verdade. Foi posterior à transformação do primeiro e é por isso que estou me referindo à Trimúrti por aqui.

O nosso conceito de conforto muda de forma drástica, principalmente quando o colchão de ar está furado e você acorda com as costas no chão duro da barraca. E o “nosso banheiro” é literalmente nosso. Dois chuveiros para os homens e um chuveiro para as mulheres teriam que dar conta de todo o pessoal acampado. E, de fato, deu. Não peguei nenhuma fila grande e o tempo máximo de espera foi no primeiro dia, cerca de dez minutos. Pra quem tem tempo de sobra, dez minutos podem até passar em cinco. A relatividade do tempo faz muito sentido quando estamos em um acampamento sem compromissos.

Depois do primeiro banho, haveria um outro logo na sequência, o de chuva. A meteorologia provou estar apenas 50% certa e a água caiu no início da tarde de sábado. Quem não se preparou pode ter se molhado um pouco, o que não foi o nosso caso. A gente se instalou bem, mesmo sendo mirim em acampamento. Lona é básico para evitar goteiras.

A chuva deu uma assustada, parecia que não acabaria muito cedo e que o festival seria tomado completo pelo barro, mas foi só coisa da minha cabeça. Logo passou e já pulamos fora da barraca para almoçar. A cozinha do festival estava oferecendo um almoço. Era quatorze pilas o prato de comida ou doze se comprasse para sábado e domingo. Comprei para os dois e não me arrependi. Parabéns ao pessoal que encheu o meu prato e fez com que eu tirasse de vez a barriga da miséria. Rango top!

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Foi nessa hora do almoço que consegui fazer um reconhecimento mais amplo do local, agora com luz solar. Havia uma espécia de centrinho, com bar, brechó, exposições, oficinas, debates e mais umas atividades. Particularmente, gostei mais das bicicletas de bambus feitas pelo Klaus e da exposição de fotografia da Ieve Holthausen.

Depois de um tempo caminhando pelo parque voltei ao acampamento e ouvi de longe o início dos shows. Cheguei a tempo (que sorte!) de ver a Monty Python Band apresentar seus temas e reviver a classe dos Allman Brothers. Mas o melhor viria depois, depois ainda do Rock in Rezo e do Ale De Maria que fizeram rezas e agradecimentos à natureza e homenagens aos índios, bugres e nativos. Depois também do Dr. Medeiro e seus Garden Eyes (achei demais esse nome, deveria ter pensado nisso antes!), que fizeram também um belo show, com altas doses de Mutantes.

O melhor da noite seria quase que uma reencarnação. A Back Doors Band fez o melhor revival de The Doors possível. Eu desconfio até agora que o vocalista estava usando playback na voz, ele não pode cantar tão igual ao Jim Morrison. E desconfio que o teclado do Ray Manzarek cover é feito de aço para ter aguentado ele pulando em cima com os dois pés feito louco no fim da apresentação. O show foi tão perfeito que a equipe de som gravou todo o áudio e utilizou-o no dia seguinte no intervalo entre uma banda e outra. E valeu a pena ouvir de novo, The Doors é o bicho!

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Vishnu

A realidade paralela do Spiroway se manteve firme no domingo. Não havia mais tantas novidades, o espírito já havia sido incorporado. Àquelas horas, tudo o que parecia anormal há alguns dias já se tornara absolutamente corriqueiro. Também não choveu mais, em vez da água, alguns raios de sol iluminaram o parque.

A essa altura, o festival já havia esvaziado um pouco. A sexta e o sábado tiveram uma concentração  maior de pessoas, mas quem ficou até o fim não se arrependeu. O sol da manhã e da tarde fizeram com que as pessoas substituíssem as calças e os casacos da noite anterior por camisetas, bermudas e saias. No entanto, estamos no outono gaúcho, a época do ano que é capaz de concentrar as quatro estações em apenas um dia. À noite o frio começou a bater e a galera saiu enlouquecida atrás de grimpas secas para fazer fogueiras.

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Um pouco antes a cozinha havia deixado um recado em um quadro negro no balcão. Estava escrito mais ou menos assim “Fudeu tudo!”. Creio que o pessoal não imaginou que a larica do pessoal seria tão grande e, por algumas horas, os recursos gastronômicos chegaram quase ao fim. Foi na hora do aperto que a criatividade de uma moça da cozinha aflorou, como contou um brother meu. Um magrão chegou e pediu um sanduba de carne de panela. A moça parou, pensou e perguntou. “Moço, você gosta de arte?”. O cara respondeu que sim, e então a moça continuou: “Imagina então que em vez de ser fechado, o sanduba é aberto, com o recheio em cima da massa, pode ser assim?”. O cara novamente respondeu que sim e saiu de lá comendo uma pizza de carne de panela, muito boa, diga-se de passagem.

Na tardinha, a situação estava se normalizando. Pouco antes do início dos shows, houve uma apresentação teatral. O espetáculo Flor das Águas, de Florianópolis, foi uma espécie de mistura entre poesia, mitologia, dança e coragem. Já estava escurecendo, a temperatura já estava baixa e as três mulheres que encenavam a peça banhavam-se com água fria, caída direto da torneira. Nessas horas que a gente entende um pouco do significado de “tudo pela arte”.

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Sob um céu estrelado e com fichas de cerveja no bolso, restou aproveitar a última noite do festival. Representando Passo Fundo, subiu ao palco do Spiroway a General Bonimores, com um show cheio de composições próprias. Uma pena que na terceira noite de festival o bar do palco estava fechado. Sendo assim, exercitei as pernas subindo e descendo para trocar as minhas fichas de cerveja. No final, sobraria uma. Guardei de recordação.

O festival ia chegando ao fim, o que era uma pena, mas acabou sendo bem representado na fase final. Ainda havia tempo para os shows da Foegos e da Rocker, ambas de Nova Prata, e que misturaram covers com canções próprias. Nessas horas minha sobriedade também estava chegando ao fim. Então, tive que ficar um pouco mais longe, com a cabeça torta e os olhos embaçados. A Lorenzo Blues Trio, o Pink Floyd Cover, Os Vespas e a White Hawks finalizaram a edição 2014 do Spiroway. Acho que foi isso, pois na metade da madrugada resolvi tirar uma soneca no carro e só acordei de manhã. E aí já era hora de levantar o acampamento e se organizar para voltar à vida real. Pena, mas a gente espera que no ano que vem role de novo. Doce Páscoa!