Medo constante: a violência velada pela acusação da vítima

violência velada e cultura do estupro

O que você faz em dez minutos? Perguntei a alguns amigos e ouvi coisas aleatórias. Porém todos dividiam a mesma opinião: dez minutos é muito pouco tempo. Passa muito rápido! É o tempo de organizar a gaveta de meias ou a mesa do escritório. De esquentar a água e fazer uma miojo. De abrir uma notícia em um site, correr os olhos e tecer um comentário (e publicar). E já e foram os dez minutos. E já se foram mais dez e mais dez…

Seiscentos segundos. Esse é o intervalo entre um estupro e outro no Brasil. A cada dez minutos uma pessoa é violentada sexualmente no nosso país. Esses dados assustadores foram declarados pelo estudo mais recente do Ministério da Justiça, que aponta que 50 mil mulheres são estupradas por ano no Brasil.

Os números são apavorantes e correspondem a 26,1 estupros por grupo de 100 mil habitantes. No Rio Grande do Sul são 18,4, estupros por grupo de 100 mil habitantes. Esses números de ocorrências registradas, por sua vez, não contemplam todos os casos que acontecem. Milhares deles são abafados e ficam escondidos envoltos em um mar de vergonha e culpa. Em até 65% dos casos o agressor é familiar ou conhecido da vítima.

Infelizmente os brasileiros fazem questão de perpetuar a cultura do estupro, que nada mais é que o fato de tirar o foco do criminoso e colocar na vítima. Recentemente na cidade de Castelo, no Piauí, quatro adolescentes foram brutalmente violentadas por jovens com a idade semelhante às delas. Uma das meninas não resistiu e morreu. Na cidade de Passo Fundo, norte do Rio Grande do Sul, duas jovens estupradas por homens que ofereceram carona depois de uma janta. Todas disseram não.

Nenhuma foi ouvida.

Depois de terem suas vidas destruídas e no caso de uma delas, interrompida, recebem o pesado fardo da culpa pelo que aconteceu. Afinal de contas, elas não deveriam ter conversado com os estranhos, elas não deveriam estar ali, elas não deveriam usar shorts tão curtos (pouco importa se fazem 40ºC), elas que foram putinhas. Isso mesmo, putinhas. É assim que homens do alto de sua experiência com assédio se referem às meninas que tiveram seus corpos violados e adentrados contra a sua vontade.

Os mesmos homens que não titubeiam ao dizer que seu o estupro é o seu maior medo caso sejam presos um dia. Ainda essa semana, em um vídeo aleatório sobre tatuagens, um homem que removeu a tattoo de uma mulher nua nas costas porque ia passar alguns meses na prisão. Seu maior medo: o estupro.

Esses mesmos homens que apontaram para as meninas que sofreram estupro se tivessem tomado conhecimento de um caso igual, mas com as vítimas MENINOS, teriam começado uma cruzada em busca do bandido. Nem passa pela cabeça falar que meninos de respeito não pegam carona. Esses homens nunca falariam que os meninos foram putinhos e provocaram, pois como li num dos vários comentários babacas que vejo por aí de um homem sobre o caso: “se pegaram carona sabiam que ia ter”. Esse, meu amigo, é o pensamento de um estuprador.

Quando eu pego carona a única coisa que sei e que espero ter é transporte.

Fui obrigada ainda a presenciar mulheres que diariamente colocam a música no último volume em seus fones para não ouvir comentários sobre seu corpo (isso é assédio!), mulheres que perdem alguns minutos do dia tendo que pensar qual trajeto fará para poder escolher uma roupa “menos estuprável”. Ouvir uma acusação dessas (não que ser puta seja um problema, mas isso fica pra outro dia) de mulheres que, assim como essas meninas sentiram frio na nuca só de imaginar alguém não respeitando o seu não. Fazer isso, irmãs, é cuspir no espelho.

E o não destas meninas, destas mulheres, destas irmãs, não foi respeitado.

violência velada e cultura do estupro

Estuprum, em latim, significa relações culpáveis. Sua palavra derivada, estupro, é explicada no dicionário mais famoso da língua portuguesa como crime que consiste no constrangimento a relações sexuais por meio de violência; violação.

Como para muitas pessoas é preciso desenhar para entender, há alguns meses a blogueira Rockstar Dinosaur Pirate Princess postou um pequeno vídeo aonde explica, usando uma metáfora com uma xícara de chá, que relações sexuais se houver consentimento. A produção do vídeo é da BlueSeat Studios, com animação de Rachel Brian e narração de Graham Wheeler.

No vídeo “Chá e consentimento” fica muito mais fácil entender, já que você prepara uma xícara de chá e oferece para a sua acompanhante. Se ela disser que sim, sirva uma xícara para ela. Se disser que não, não a obrigue. Se inicialmente ela estava empolgada com a ideia de tomar um chá, mas depois hesitou não a force. Se antes de dormir ela queria e de manhã não, não insista. Se estiver inconsciente, nem tente. Se quando entrou no carro ou aceitou a companhia os planos eram tomar chá, mas depois a vontade passou, não continue. Essa metáfora pode parecer boba, mas se ninguém obriga o outro a tomar chá, porque tem que obrigar a fazer sexo?

Eu fui criada a me esconder, a me cuidar. Mas e os meninos? São bichos com instintos incontroláveis e as mulheres devem se esconder para não incomodá-los ou sofrerão as consequências sem direito de reclamar? Não é legal ter medo sempre que se sai sozinha. Não é legal saber que por eu estar com uma calça colada indo pra casa à noite, depois da academia, eu mereço ser estuprada. Não é legal sentir um frio na espinha quando percebe que tem um homem andando atrás de você. Sabe aquele medo que vocês têm de ser estuprados se um dia por ventura em algum momento da vida forem presos?

Nós temos esse medo todos os dias. E não é uma hipótese, é na vida real. No caminho do trabalho. No caminho da escola. No caminho da balada. Na carona do amigo. No quarto ao lado. Na casa do lado. Toda hora. E a cada dez minutos, o medo vira terror.

Atualmente a pena no Brasil é de 6 a 10 anos de reclusão para o criminoso, aumentando para 8 a 12 anos se há lesão corporal da vítima ou se a vítima possui entre 14 a 18 anos de idade, e para 12 a 30 anos, se a conduta resulta em morte.

De acordo com o artigo 213 da Lei nº 12.015, de 2009, o estupro é considerado crime hediondo e está entre os mais violentos. O crime pode ser praticado mediante agressão ou quando praticado contra menores de 14 anos, alienados mentais ou contra pessoas que não puderem oferecer resistência. Isso inclui drogar (lembrando que álcool também é droga) uma pessoa para manter com ela conjunção carnal, pois a vítima não pode oferecer resistência e configura crime de estupro praticado mediante violência presumida.

Enquanto você lia esse texto, ao menos uma pessoa foi obrigada a tomar chá.