O amor entre os escombros

“O local mais obscuro fica justamente embaixo da lâmpada”. Assim sentencia um antigo provérbio chinês. Perguntemos a um casal apaixonado:

− O que é o amor?

É provável que o casal considere a pergunta ociosa em meio aos intermináveis beijos e abraços. “Uma enciclopédia inteira sobre o amor não vale um único beijo de moça enamorada”. Machado de Assis responde à pergunta ao prolongar a dúvida que só quer fazer amor.

De qualquer forma, as reflexões e o imaginário sobre o amor via de regra se voltam para casais jovens. Como se as rugas e os corpos murchos esturricassem o mais nobre dos sentimentos. Como se apenas a bengala pudesse ser o último arrimo. Asilo e exílio se fundem e se confundem.

O diretor Michael Haneke procurou filmar o crepúsculo do Amor (2012). Um casal idoso é retratado com muita singeleza. O marido faz questão de elogiar a aparência da esposa há muito aposentada após mais uma noite na ópera. A câmera capta os almoços e as leituras conjuntos em que o casal compartilha afagos e respeito mútuos. Se as labaredas da paixão já não ardem, as décadas de amor embalam as palavras e o silêncio. (Todos sabemos que a palavra bem pode vestir máscaras para evitar o embaraço da intimidade que o silêncio traz à tona; conseguir compartilhar o silêncio, eis um dos espectros do amor.)

A narrativa nos vai enredando no cotidiano do casal. Quando menos percebemos, chegamos a antecipar determinada réplica do marido septuagenário – seu trato gentil com a esposa é tão corriqueiro que, a princípio, Haneke nos faz pensar que sua obra será mais uma reiteração hollywoodiana de um belo amor ficcional que compensa – e substitui – a fratura real das relações atuais. Mas o diretor de O Castelo (1997), filme baseado na obra homônima de Franz Kafka, e A fita branca (2009) logo nos mostra que todos os caminhos levam ao amor – e a Roma.

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Se a morte não tem data marcada para ocorrer, o termo “terceira idade” tenta remendar o chute nos fundilhos do triste e irremediável processo da velhice. Eis que de repente, e não mais do que de repente, a esposa distinta começa a cair pelo despenhadeiro da decrepitude. Ao invés de cortejá-la com galanteios, o marido agora deve lhe trocar as fraldas. Amor enfermeiro; amor senil. Os dois extremos antípodas de nossa vida mostram seus dutos subterrâneos de comunicação. O bebê e o idoso babam. Infância e velhice heterônomas. Não à toa, a tradição grega fez com que a tétrica Esfinge assim perguntasse a Édipo:

− Decifra-me ou devoro-te: quem é que, pela manhã, caminha com quatro patas, durante a tarde com duas e a reboque de três, ao anoitecer?

Trêmulo, Édipo só faz hesitar. A Esfinge então lhe arremessa a resposta em riste:

− Decifra-me enquanto te devoro: ecce homo, eis o homem. A aurora te vê engatinhar, Édipo, o adulto bípede e altivo não tarda a postar-se de pé, mas o crepúsculo sentencia: até onde caminharia o velho sem o arrimo da bengala?

O tempo nos transforma em ampulhetas humanas. O marido gentil terá que velar a senilidade de seu amor como quem tenta conter os grãos de areia que escorrem sem solução pelo delgado pescoço da ampulheta.

Que sentimentos a completa impotência pode despertar? Que sentimentos a completa impotência diante da morte de nosso amor pode despertar? “Só alguém dentro de uma situação pode julgá-la, e esse alguém é justamente o último a poder julgá-la”. Sábio Bertolt Brecht: o juízo mais efetivo só poderia ser esboçado pelo condenado à morte que sobe ao cadafalso; mas, justa e injustamente, esse condenado nada mais pode fazer senão morrer. Mas nós, os espectadores, já havíamos sorrido com as trocas de carícias do casal idoso; nós já nos deliciáramos com as juras de amor que haviam permanecido apesar das décadas. Assim, que podemos pensar sobre o desejo mórbido da esposa que vegeta com o passar dos dias?

− Eu quero morrer. Isso não é justo com você, eu não tenho que me tornar um fardo para você. E isso não é justo comigo. Sobretudo comigo.

Se fôssemos o marido – e a posição do espectador que ainda não sofreu um derrame se aproxima das contradições do cônjuge ainda não senil –, que poderíamos dizer à esposa de décadas? Talvez tentássemos articular algum lugar comum, “não, eu estarei do seu lado, eu não vou te abandonar”, mas o Amor de Michael Haneke quer caminhar por veredas mais escatológicas e cruéis.

A filha do casal, com muito carinho, chegara a dizer que, quando criança, costumava escutar a sinfonia dos pais fazendo amor. Mas, agora, o amor se torna dissonante: a filha, que não mora em Paris, começa a julgar o pai pelo fato de a mãe não estar internada em um hospital. Ora, diz o pai tão impotente quanto a filha, “sua mãe não está internada porque eu lhe jurei que cumpriria seu desejo de jamais voltar para lá”. Em termos clínicos, segundo uma ética médica e abstrata, o marido está sendo irresponsável. Sua esposa, assim dizem os manuais impessoais, deveria estar sobre uma maca hospitalar. Mas a esposa, seu amor de muitas décadas, não lhe pedira para nunca mais ser internada? Que fazer? Obedecer à moralidade ossificada ou à derradeira súplica de uma moribunda? A filha julga o pai, mas, ao mesmo tempo, não vem morar em Paris. Apontar o dedo para o outro transforma a impotência em ódio. “Se eu não posso fazer nada, ao menos posso xingá-lo”. Enquanto isso, a morta-viva cada vez mais insciente nem ao menos pode chorar. Mas nós podemos – nós, os espectadores judiciosos.

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O lado direito do corpo já está paralisado. A mão toda retorcida parece reassumir a posição fetal. Logo a doce professora de música recusa a papinha que o marido lhe dá na boca torta – o arremedo da antiga boca, uma cicatriz, uma cloaca. O que sente uma pessoa tornada totalmente dependente em face de uma sociedade estruturada sobre o orgulho do ego? “Se eu não posso ser senhora de mim mesma, prefiro morrer”. Quem poderá julgá-la? O filme ressoa ainda uma outra pergunta para os náufragos que ainda vivem – o marido, a filha e os espectadores: quem quer de fato ajudar a moribunda?

A inversão do tom amoroso que Haneke estrutura é digna da maestria de um Fiódor Dostoiévski. O marido que outrora amava agora é o enfermeiro que odeia. Na verdade, o amor é apenas a face brilhante da lua. (Quiçá a única face para a qual queiramos dirigir nosso olhar.) O filme e a vida nos revelam que o amor quer uma amante altiva, alguém que possa ser sujeito e objeto de carinho. Não amamos vegetais, nós apenas os regamos. (E, talvez, torçamos para que um dia morram esturricados sem nem ao menos nos darmos conta.) Como a esposa quer morrer, mas o corpo insiste em respirar, o marido galanteador, gentil, cordato e altruísta decide assumir um último papel no palco de sua tragédia. O travesseiro sobre a esposa que só emite grunhidos logo a asfixia. O marido cumpre até o último suspiro os desejos de seu amor.

Os espectadores ficamos atordoados. Como entender? Que dizer? Que fazer? Como sempre, julgar. Julgar para expurgar. Julgar para se eximir. “E que uma situação assim nunca me ocorra”, diz o silêncio do espectador cúmplice. Michael Haneke ilumina os dutos e tubulações de esgoto – queremos de fato saber para onde vão nossos detritos? Compomos odes e mais odes à violeta e sempre nos esquecemos de que foi o estrume que fez florescer a beleza púrpura. Os únicos vincos que admitimos no rosto do amor são os desenhos dos sorrisos. Quando o tempo e a doença legam cicatrizes, é preciso se esgueirar pelo egoísmo – enfermeiros e asilos encarnam o altruísmo terceirizado. O lindo amor de outrora pousa no mais reluzente porta-retrato, enquanto a barbárie precisa recorrer ao subsolo das nossas memórias, os escombros de mais uma segunda-feira.

Texto: Flávio Ricardo VassolerCarta Maior