O apocalipse zumbi em que vivemos

Foto: Joseph Greer

I

Já havia passado das três horas da manhã e eu deveria ir para casa. A pé. Acabou a janta da firma. Janta que como todas as outras se estenderam até a madrugada. Junto de nós haviam originais, bourbons, barreiros e absolutas, afinal era uma janta, não uma reunião de condomínio. Fui então. Sozinho caminhar umas dez ou quinze quadras. Foi a primeira vez que achei estar em um apocalipse zumbi em Passo Fundo, cidade onde moro.

Isso aconteceu há cinco anos, uma época em que era possível caminhar pela cidade depois das onze horas da noite sem se preocupar em entrar para as estatísticas. Não que fosse seguro, mas a preocupação era menor. Era menos faroeste. Completando o ano de 2013, a cidade registrou 49 homicídios. Traduzindo melhor, a cada quatro mil pessoas, uma é assassinada por aqui.

Enfim, no ano de 2008 foi a primeira vez (segunda, na verdade) em que me senti em um apocalipse zumbi na cidade. Aqui não tem uma crackolândia evidente e extensa como em cidades maiores, por isso o pessoal que fuma pedra se espalha. Vivem no caminho entre a boca de fumo e o centro. Eu estava no centro, não em uma boca de fumo. Mas isso não fazia diferença naquela hora, estava tudo misturado.

Foto: Flaubi Farias
Doei um real para o senhor ‘comprar comida’. No dia seguinte vi ele fumando crack na esquina. Não se deu o trabalho nem de me deixar na dúvida.
Foto: Flaubi Farias

O corpo humano está para os zumbis como o crack está para os viciados. É o único instinto restante. Todas outras necessidades e aptidões inexistem. Higiene, relações, compromisso e a soma de 2+2 são coisas que nem um nem outro se lembra mais. Naquela noite eu vi nada menos do que trinta zumbis em Passo Fundo. Eu contei. E cada zumbi que eu passava era um obstáculo a menos. A verossimilhança com Resident Evil naquelas horas foi enorme.

Um ano depois dessa constatação fui assaltado. Levaram meu dinheiro e celular, mas deixaram o meu cérebro. Se antes eu havia passado apenas por zumbis decrépitos, arrastando-se pelas ruas em um sofrimento que só poderia ser aliviado pelo único ‘alimento’ possível, neste outro dia eles estavam rápidos e armados. Zumbis da vida real também evoluem.

Campanha educativa que traz inúmeras informações sobre o crack, desde as táticas utilizadas pelos traficantes para aliciar usuários de outras drogas ao crack, até os efeitos dessa droga e as conseqüências que causa na vida das pessoas e de seus familiares.

II

Foi então que eu comprei um carro. E finalmente pude fazer o que era o maior barato aqui na cidade. Ficar engarrafado na Morom e na Independência e ouvir sertanejo universitário a níveis burjkhalíficos. A parte do som é opcional. Você pode fechar os vidros e ligar o seu som alto, mas ficar engarrafado é inevitável, mesmo quando você não quer.

Você tem que ter um carro. Um carro potente. Muita gente riu dessa frase sem antes se olhar no espelho. O carro está enraizado na cultura brasileira. Mesmo com exceções, o povo brasileiro em geral, é fã de automóveis e deseja ter o seu. Ainda mais por aqui, onde transporte público ruim é um pleonasmo.

O carro me dá um sentimento de comodidade e liberdade, confesso. Mas aí eu percebo que estou em Passo Fundo e que minha liberdade está congestionada na Avenida Brasil, logo atrás de dois carros parados em fila dupla. Estão esperando alguém sair do shopping. “É rapidinho”, pensam. Tal como um apocalipse zumbi, aqui há mais carros parados do que se locomovendo.

E hoje, quando eu lembrei dessa história toda de zumbi, vi uns alunos saindo ali do colégio Conceição, todos com os olhos vidrados em seus respectivos celulares. E percebi que toda vez que eu quero me sentir um pouco zumbi eu saio para caminhar com o celular na palma da mão e os olhos fixos na tela. Já faço isso sem tropeçar.

Cena do curta-metragem 'Social Network'
Um zumbi caminhando tranquilo
Cena do curta-metragem ‘Social Network’

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