O Corpo

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Por Gabriely Santos

Esbarrei em um morto. Ok, mentira, mas cheguei no necrotério por engano. O encontro com o morto foi precipitado. Eu li “Proibida Entrada de Alunos” e continuei.  Quem não sabe que impedir é impelir? Lá estava eu numa sala escura de fim de corredor e lá estavam minhas mãos, porque não se trata de um texto fictício e eu estava lá, eu e o tédio da terça-feira fria acumulado no fundo do estômago, descobrindo o corpo de um morto.

Olhei, por minutos ou eras, o corpo ali, inanimado e vazio, como se nunca houvesse existido um universo inteiro dentro daquele cérebro, como se aquela boca não tivesse ferido e feito rir milhares de vezes com palavras e beijado outras bocas e outros corpos e sentido seus gostos e outros gostos.  E os ouvidos, que musicas teriam escutado? Que sons aqueles ouvidos que levavam a consciência e que traziam paz ou ansiedade e que não existiriam nunca mais, assim como as palavras que foram verdades absolutas por muito tempo, as palavras que determinaram tanta coisa – também ali não estavam e poderiam não ter existido.

O corpo estava ali jogado, era objeto de estudo, como se aquele nariz não tivesse lhe trazido a consciência cheiros que lhe deram prazer ou náusea ou o quase nada da maioria dos dias. Mas o pior eram os olhos, olhos que viram muito, lugares, pessoas, filmes, livros, ilusões, olhos que guiaram, que traíram, que brilharam e estiveram – talvez – nos sonhos de outros olhos e que agora eram duas esferas que tateadas no escuro seriam confundidas facilmente com bolinhas de gude.

O corpo ali, sem coração pulsando – um coração que talvez tivesse pulsado uma última vez depois que todos os outros órgãos já não respondiam. Um coração que talvez tenha pulsado quarenta, cinquenta anos por força do impulso involuntário, por força de alguma paixão, por força do sangue que insistia em correr e que, um dia – uma noite? – não correu mais, e morreu.

O que é a vida, afinal? Eu quis saber, só daquela vez. E eu me lembrei de uma noite quando era criança em que, não sei o porquê, eu pensei tanto na morte e em como seria frio de baixo  e sozinho de baixo da terra, que eu desejei não ter nascido. Depois eu dormi e, mais de onze, doze anos depois, eu estava lá, sentindo quase aquele mesmo desejo de não ter nascido para não precisar morrer.

Foi quando o enfermeiro entrou e perguntou o que eu estava fazendo ali. E então eu me lembrei que ainda era terça-feira no mundo e que ainda existiam milhares de restrições no espaço e no tempo, mas que também existam milhares de possibilidades. E que eu ainda tinha brilho nos olhos, palavras na boca, sons nos ouvidos, pulsação no coração e um universo no cérebro. E que – talvez – se eu compartilhasse com o maior número de pessoas essas coisas todas eu pudesse me manter viva por mais um tempo. E que quando nenhuma dessas pessoas existisse mais, eu ainda vou ser a energia que fazia o meu sangue correr, e estarei em algum lugar, qualquer lugar, ainda e sempre existindo, porque existir, uma vez que não é opcional não dá lugar ao medo, pelo contrário, faz nascer uma grande paz. E então eu quis viver. Sorri para o enfermeiro e disse que tinha me perdido, precisava ir no prédio de Veterinária.

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