O som ao redor: o que se cala e o que não se esquece

Foto: Divulgação

Por Luis Fernando Novoa Garzon e Lou Ann Kleppa
Brasil de Fato

A estrovenga girou
Passou perto do meu pescoço
Corcoviei, corcoviei
Não sou nenhum besta seu moço
A coisa parecia fria
Antes da luta começar
Mas logo a estrovenga surgia
Girando veloz pelo ar
Eu pulei, eu pulei
E corri no coice macio
Só queria matar a fome
No canavial da beira do rio
Jurei, jurei
Vou pegar aquele capitão 

(Chico Science – Cidadão do Mundo)

O primeiro longa (O som a redor, 2012) do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho tem feito o devido barulho por onde passa. Kleber é contemporâneo e herdeiro da eclosão regional-global nos anos 90 que efervesceu musicalmente como “movimento manguebit” (ou mangue-beat) na batida de grupos como Mundo Livre S.A., Nação Zumbi, e na voz de Chico Science.

O filme mostra o mapa sonoro da polarização social  no nosso cotidiano: o som dos ambulantes, dos alarmes em forma de sirene ou de latido, dos carros que aceleram e que colidem, dos eletrodomésticos que ressoam o que seus donos calam, do grito que não redime, dos pés descalços pulando o muro dos condomínios, das bombinhas que, estourando em cadeia, anunciam o tiro certeiro.

O filme é dividido em três partes: 1) cães de guarda, 2) guardas noturnos e 3) guarda-costas. A questão da segurança na metrópole cindida entre a privação e o privilégio pode ser identificada como um fio condutor do filme que conta com vários personagens que vivem/transitam na mesma rua. O espaço que guardas e guardados dividem é o mesmo, com a diferença de que os guardas ficam fora da casa e os guardados se trancam por dentro. O som ampliado no filme, tanto aquele que causa incômodo aos personagens como aquele que ressalta a vingança de outros, rege a narrativa fluida e convidativamente solta.

A narrativa atravessa o tempo: a primeira cena expõe uma foto antiga de uma família camponesa em frente a um engenho. Todas as cenas seguintes se passam na Recife atual. No tempo do engenho de cana, uma autoridade central detinha dinheiro e força a seu serviço para impor-se. No tempo da urbe, cada grupo social se protege ou se abriga como pode: a autoridade está fragmentada e milícias fazem o papel da polícia. Na cidade herdeira das pilhagens e chacinas, um dos fragmentos volta para cobrar seu preço: “O senhor não se lembra? Pois eu tinha seis anos – e eu lembro.”

A narrativa atravessa o espaço: o ex-senhor de engenho é dono de metade dos imóveis da rua. A trama deduz a cidade do engenho, a riqueza fundiária da latifundiária. Na metrópole sitiada, as rarefeitas zonas urbanizadas são privatizadas e gentrificadas. O espaço privativo é pouco para tanta gente e a rua fica vazia. Aquela rua na praia de Boa Viagem é um simulacro do engenho: a família do coronel continua dona do pedaço.

O mandonismo e a desigualdade impregnam os personagens: um dos netos do coronel herda o ofício de administrar os bens da família enquanto agente imobiliário, o outro herda a truculência, o poder desmedido de quem não deve explicações. O filho do coronel acha um absurdo pagar a um grupo de seguranças para que façam a vigilância da rua, afinal de contas, ela é patrimônio familiar. Do outro lado da linha social estão os rapazes que oferecem o serviço de segurança; o lavador de carro que tenta ajudar a madame com suas bolsas é repelido e risca a traseira do seu carro; a empregada que acompanha o segurança que tem a chave da casa de um moradores (porque ficou incumbido de regar as plantas) mas que só cede se for “na cama”; e a vizinha invejosa que ataca a outra quando recebe em sua casa uma TV algumas polegadas maior que a sua. No meio, entre os muito ricos e os pobres, está a mãe de família de classe média que deixa que seus filhos decidam sua rotina: paga um curso de inglês, depois muda para chinês quando a filha argumenta que eles já têm aula de inglês na escola. Essa mulher tenta dar vazão à sua vida entre grades (tanto físicas como simbólicas): usa o baseado como escape ao vazio e eletrodomésticos que mal dissipam desejos incontidos. Esta personagem representa uma “Classe C” muito díspar daquela que figura na imagem oficial em massiva e empolgada ascensão social. O latido incessante do cachorro do vizinho (aquinhoado com mansão e piscina) tangencia as distintas posses com uma barreira sonora. Emparedada entre as classes, a mulher revida com um aparelho de emissão de ultrassom que aflige o cão de guarda. Logo depois vexa a empregada iletrada que enfiou o aparelho na tomada 220, ignorando a advertência do adesivo.

O medo de ser invadido e ceder seu lugar social permeia o filme todo: o coronel de engenho tem medo de perder o monopólio reciclado; o agente imobiliário ouve passos acima de si quando mostra o porão do antigo engenho abandonado e vazio para a namorada. Além disso, disfarça seu incômodo ao ver que a empregada traz as netas e o filho que se espalham na casa. Este bom neto do coronel é atormentado por um banho de sangue que nem faz parte de sua memória, mas define o passado de seu avô. A caçula da família de classe média tem um pesadelo em que a casa é tomada e desmanchada por infinitos assaltantes. O medo é a herança onipresente das gerações mais novas.

O som atravessa. Desde seu primeiro curta (Enjaulado, 1997), o diretor Kleber Mendonça Filho conta histórias através do som ambiente. É seu método sinestésico destapar os olhos destampando os ouvidos, já que o som é mais imune aos filtros que a imagem. O som ao redor reúne um arsenal de signos iniludíveis que se antecipam e desdizem os significados autorizados. Apuremos ouvidos e olhares diante dessa provocativa sonoplastia de uma sociabilidade urbana truncada e renhida.

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