Podemos considerar Candy Crush um problema de saúde pública?

Por Pedro Burgos

Depois que você termina um “episódio” de Candy Crush Saga, aparece uma animação meio tosca vagamente conectada ao tema “doçuras”, que fica congelada com a mensagem QUE DIAS BONS. A primeira vez que eu a vi, achei engraçada a falha delocalização e a bizarrice geral da cena. Mas na quarta, eu quase respondi, em voz alta: “Dias bons pra quem?” Eu não o fiz porque, bem, era duas e meia da manhã e não faria sentido acordar minha namorada. Mas aquilo ficou na minha cabeça. Aquilo, e o jogo. No dia seguinte, estava assistindo a um espetáculo teatral e no meio do monólogo, que tinha projeções abstratas no fundo, eu vi doces vermelhos, laranjas, amarelos, verdes e roxos. Eles se encaixavam e explodiam. Havia alguma coisa errada, obviamente.

Pesquiso a nossa relação obsessiva com tecnologias digitais – joguinhos sendo uma delas – e pensei imediatamente em reler algumas coisas para escrever um artigo sobre o assunto. E não consegui achar tempo. Porque, apesar de ter me tocado de quão bizarra era a minha queda por Candy Crush, ainda considerava meu autocontrole mais forte. Fui descobrir, como qualquer viciado, que superestimo meu poder sobre o objeto da compulsão. “Nah, eu posso parar quando quiser. Só mais uma vida aqui na fase 70.” Logo, todos os pequenos intervalos, de ir ao banheiro aos minutos anteriores ao sono, são consumidos pelo jogo. Se você não se cuidar, todo o resto das coisas que você faz durante o dia viram intervalos1.

Mas achei que valeria escrever especificamente sobre Candy Crush porque ele não escolhe suas vítimas. O perfil comumente associado ao “viciado em jogos eletrônicos” não se aplica aos “jogadores” do puzzle colorido. Psicólogos que estudam o assunto dizem que quem está mais propenso a perder a noção de tempo jogando são “jovens, homens, mais impulsivos, com dificuldade de convívio social, baixo nível de empatia e pior capacidade de lidar com as emoções”. Mas na minha lista de amigos que “jogam”, há gamers veteranos, advogadas, adolescentes, jornalistas de 30 anos de carreira, gente que vai pra balada, gente reclusa. Não há um padrão.

Por que diabos este jogo em particular é tão viciante para tanta gente cair no seu feitiço e, mais importante, por que achamos graça do vício e não levamos isso a sério a maior parte do tempo?

Você é um jogador ou um rato?

A essa altura há uma boa chance de você saber como funciona um vício no nosso cérebro, e o papel das descargas de dopamina (e a expectativa de mais delas). Se não, não se preocupe. É um jargão técnico que pode mudar a qualquer momento, à medida que entendemos melhor a nossa cabeça. Mas o que importa é que, como Luciana Ruffo,psicóloga do Núcleo de Pesquisas de Psicologia em Informática da PUC-SP, explica, o vício em jogos eletrônicos funciona da mesma forma que qualquer outro:

Os jogos têm por característica o prazer da satisfação imediata. Quando se vence uma partida, a euforia da vitória e a ansiedade de conseguir viver aquela satisfação de novo tomam conta da pessoa e a levam a perseguir essa sensação de bem estar. No universo dos vícios, químicos ou não, quanto mais rápido atinjo o prazer e menor o seu tempo de duração, mais persigo continuamente aquela sensação. Esse processo tem a ver com nosso sistema cerebral de recompensas para a sobrevivência da espécie. Ele lhe dá o prazer a fim de repetir um comportamento. O problema é que deturparmos o caminho e então vamos atrás dessa sensação onde ela nem sempre deveria existir.

Todo mundo menos a sua mãe entendem a graça de jogar um jogo comum como Guitar Hero, FIFA, ou qualquer shooter. Há um quê de esporte e outro de interação com uma narrativa. Você joga, fica melhor, compete diretamente, ou avança na história. Você vê a sua habilidade crescer e é constantemente testado – é possível dizer que o seu “platô de habilidade” nunca chega. Alguém pode se “viciar” nesses jogos também e fazer poucas outras coisas, mas os psicólogos explicam que a obsessão por jogos assim, quando a pessoa chega a esse ponto, é na verdade uma maneira de mascarar outros problemas. A pessoa foge para gastar horas no joguinho porque em outras situações da vida a realidade não é aprazível.

Mas o vício em Candy Crush, Bejeweled, Freecel e coisas do gênero trazem outros motivadores mais claros e, digamos, democráticos – não há pessoas deprimidas gastando dias nele, há até gente no meio de uma Lua de Mel. Porque, para começar, jogos desse tipo não têm a barreira de habilidade que afasta tanta gente dos jogos complexos. Mas o efeito é tão forte (devastador?) porque eles são projetados para provocar o vício (você pode argumentar que RPGs online também2). E este é todo o meu problema com eles.

Como fazer um jogador ficar “viciado”, ou não perder o interesse pelo jogo? Há alguns truques, brilhantemente expostos no influente artigo Behavioral Game Design, escrito em 2001 por John Hopson, que trabalhou como “pesquisador de usuários” na Microsoft e a Bungie, da série Halo. PhD em psicologia, ele encontra nas controversas pesquisas de BF Skinner a solução para o “problema” (entre os game designers) de pessoas que param de jogar. Skinner é o psicólogo que propôs há algumas décadas que o livre arbítrio é uma ilusão, e que estamos o tempo todo respondendo inconscientemente a estímulos. A sua pesquisa é bem explicada neste vídeo do Penny Arcade (obrigado, Marcellus!):

http://youtu.be/KbtAn3dic-g

A descoberta mais interessante (mesmo para os maiores críticos, como Noam Chomsky) de Skinner foi sobre a natureza do “Comportamento Operante” nos animais. No experimento de 1932 conhecido como a “Máquina de Ensinar”, ele colocou pombos e ratos (não juntos) em uma caixa e uma tigela de comida, vazia. Havia uma alavanca ou botão, e os animais rapidamente, por experimentação, entenderam que apertá-la fazia com que bolinhas de ração caíssem no prato. A partir daí, Skinner foi mudando o ritmo da entrega das recompensas: a bolinha era entregue apenas na décima apertada, e os bichos descobriam o novo mecanismo e continuavam apertando. Em outro grupo de ratos e pombos, a comida era entregue em intervalos aleatórios: às vezes na décima pressionada, outras na centésima.

O que ele descobriu, e isso é relevante e replicável no mundo dos games, é que as “recompensas em intervalos aleatórios” são mais motivadoras que as em intervalos fixos. Se o rato está condicionado a receber sempre a comida a cada 5 vezes que pressiona a alavanca e de repente ele para de recebê-la, ele rapidamente para de pressionar a alavanca. Se ele está acostumado a intervalos aleatórios, mesmo quando o estímulo some temporariamente, ele ficará pressionando centenas de vezes antes de desistir. A brincadeira fica mais efetiva quando além de deixar o intervalo variável, a recompensa é variável também. Isso soa familiar?

slot-machine

É exatamente como funcionam as slot machines dos cassinos: nós sabemos que há uma recompensa, e ela própria pode ser enorme, mas não sabemos quando ela chegará. Nós trabalhamos com a lembrança, que envolve dinheiro, luzes e sons, e cada vez que giramos a alavanca há uma descarga de dopamina, apenas pela expectativa de recompensa – nem é preciso ganhar qualquer coisa.

Jogos viciantes são totalmente baseados nas recompensas programadas em intervalos variáveis. Como não sabemos quais peças cairão no Candy Crush, continuamos fazendo combinações para ver doces maiores se juntarem e explodir. Como o evento é relativamente curto (um jogo, bem-sucedido ou não, raramente demora mais que 8 minutos), tentamos de novo quando falhamos. E de novo. É claro que há outros elementos que nos fazem sentir compelidos a jogar mais: há a pressão de superar nossos amigos (o sucesso se deve aos 22 milhões de fãs no Facebook e ele é totalmente conectado); há a curiosidade pelo próximo desafio: Candy Crush não é rigorosamente o mesmo em todas as fases. As minúsculas variações de regras que são apresentadas fazem parecer que precisamos melhorar as nossas habilidades, quando na verdade a sorte têm uma importância tremenda. Há uma curva de aprendizado, e começamos a detectar melhor os padrões que levarão a soluções das fases mais rapidamente – como qualquer jogo, jogamos para ficarmos melhores. Mas o “platô de habilidade”, o momento que não melhoramos mais, chega com poucas horas de prática. A partir desse momento entramos na caixa de Skinner, estamos apertando botões e ganhando doces. Literalmente.

Addictive! Two thumbs up!

Fazer um jogo todo baseado nas nossas fraquezas psicológicas é ético? Os desenvolvedores de Candy Crush parecem se orgulhar dos seus trabalhos – há 10 anos eles fazem variações do mesmo tipo de jogo, reciclando mecânicas consagradas em pacotes viciantes e, por sorte (deles), acharam a “fórmula” que desbancou qualquer clone de FarmVille no Facebook. Hoje, a empresa é invejada: uma das mais concorridas palestras do último Game Developers Conference foi de Tommy Palmer, um dos designers da King.com, explicando a “fórmula do sucesso” de Candy Crush Saga. Alguns dos ensinamentos:

 

  • Conseguir cativar “jogadores de primeira viagem” é importante (Palmer disse, com orgulho, que a própria mãe era viciada em Candy Crush), porque eles são “leais”, justamente por não conhecerem outros jogos e caírem mais facilmente nas armadilhas das compras dentro do jogo.
  • Outro fator fundamental é criar uma experiência cativante mesmo que a pessoa tiver só 1 minuto para gastar. Além de o jogo ser leve, carregado rapidamente, ele funciona offline e todas as plataformas estão ligadas. Então você começa no PC, pelo Facebook, e pode terminar em um smartphone. O mantra é eliminar qualquer fricção que faça com que o jogador desista de jogar, em qualquer lugar.
  • Outro fator determinante para a “retenção de jogadores” (é o termo técnico): o jogo nunca acaba, e a cada atualização são acrescidas novas fases.
  • É importante, e isso eles fazem muito bem, que o jogo não seja fácil. O fato de Candy Crush ser difícil (não de uma forma uniforme: a fase 65 é certamente mais difícil que a 69) contribui para o “engajamento” dos usuários. É claro que um golpe de sorte pode resolver a dificuldade e eliminar várias linhas e colunas automaticamente, mas é importante que a sensação de “agência” seja clara.

Palmer até elaborou uma equação para sistematizar o segredo do sucesso. No finzinho da palestra, ele disse que um dos designers mandou uma mensagem a ele, breve, que lia “Eu quero minha esposa de volta”. Ele riu. Depois, mostrou com orgulho um slide comemorando o fato que os jogadores de Candy Crush gastaram somados 103 mil anosno jogo, e isso há alguns meses. Aplausos da platéia.

Como isso é motivo de orgulho? Como o adjetivo “Addictive” (viciante) é visto como algo bom por resenhadores de jogos? A imprensa de games vive em uma dimensão bizarra. Quando o Google substitui o seu doodle por uma versão jogável de Pac-Man, lemos uma estimativa que o mundo “perdeu” quase 5 milhões de horas produtivas e achamos divertido. Muitos sites de tecnologia criaram seções de “joguinho viciante da semana”, ou “destruidores de produtividade”, e isso continua sendo uma boa piada. Eu sou o último a propor a demonização dos jogos, ou uma escolha entre considerá-los simplesmente passatempos legais e estimulantes OU destruidores de produtividade de relações. Mas acho que é importante ter uma visão com um pouco mais crítica e com nuances em relação ao custo social de coisas aparentemente inofensivas como Candy Crush.

Precisamos pensar as indústrias digitais como as offline, tipo a alimentícia: é interessante saber como a comida é feita, se a produção é ética, ao menos para tomar uma decisão mais educada sobre o que comer. Ninguém precisa ser vegetariano, mas assim como há uma merecida pressão do público para melhorar as condições em frigoríficos ou na indústria de hardware, é importante saber o que se passa na cabeça dos criadores dos onipresentes joguinhos sociais, quais os seus objetivos.

junkiefood

Isso pode estar começando a acontecer. O New York Times recentemente publicou uma excepcional reportagem sobre como a indústria de junk food tem uma certa ciência em fazer as porcarias que comemos mais viciantes. A Killscreen,provavelmente a melhor publicação sobre jogos da atualidade, fez a óbvia comparação dessas práticas com os joguinhos:

Howard Moskowitz é um conhecido “otimizador” de alimentos, e nessa função já ajudou grandes marcas a atrair o maior número de consumidores não por marketing, mas com um foco minuncioso na própria comida. O seu trabalho gira no que ele chama de “saciedade sensorial”, que é o que explica por que tanta gente come besteiras em quantidade bem maior do que comidas com sabores muito mais notáveis. “Sabores fortes e distintos podem sobrecarregar nosso cérebro”, escreve Moss, “que responde deprimindo a nossa vontade de comer mais.”

Os maiores hits – sejam eles Coca-Cola ou Doritos – devem o seu sucesso a fórmulas complexas que excitam nossas papilas gustativas o suficiente para serem atraentes mas não tem um sabor único, distinto, que diria para o nosso cérebro para parar de comer.

Eu penso no clássico ‘pa-ding!’ de Mario coletando uma moeda. Eu penso no satisfatório swoosh de fatiar uma fruta em Fruit Ninja. O notável estudioso de games Jesper Juul, em seu livro “A Casual Revolution”, define o sentimento que essas ações nos trazem como “juiciness” (“suculência”). Quanto mais suculenta é uma mecânica do jogo, mais facilmente nós cairemos no feitiço e voltaremos a ela, de novo e de novo, como um fã devoto de Doritos põe a mão dentro da embalagem amassada sem ao menos pensar

Além de um pedaço da crítica especializada começando a ver essa questão com mais cuidado, também já há um movimento (ainda tímido) de designers contrários a práticas já enraizadas na indústria. À frente está Jonathan Blow, dos mais brilhantes criadores do nosso tempo, que em seguidas oportunidades disse que a indústria precisa ser mais ética em relação a jogos viciantes e experiências que são alongadas artificialmente.

Os gamers parecem elogiar jogos por serem viciantes, mas isso não parece um pouco como a Síndrome de Estocolmo? Se você gasta 20 horas jogando um jogo, mas as partes boas poderiam ter sido condensadas em 3, então será que você não desperdiçou 17 horas? Se você desperdiça 17 horas por mês para o resto da sua vida, qual o custo em termos sociais de qualidade de vida, economicamente, ou qualquer outra coisa mensurável?

Será que alguém pode regular essa tendência viciante da indústria? Há muita resistência do próprio público hardcore, que se confunde com a imprensa especializada às vezes (a tal Síndrome de Estocolmo que Blow se refere). Em 2009, por exemplo, o governo alemão pediu que se estudasse alguma maneira de limitar a venda de jogos patentemente viciantes. Um oficial do governo disse que “é inaceitável que o índice de vício não seja um critério examinado quando é decidida a idade recomendada de um jogo”. As produtoras reagiram, questionando quem iria decidir que um jogo é viciante, e a ideia foi deixada de lado.

Se uma regulação é efetivamente difícil e precisa ser profundamente discutida, travas tecnológicas parecem atingíveis. O Kindle Fire HD, por exemplo, tem um controle parental bastante poderoso e específico, que permite delimitar quantas horas em um dia a criança pode passar em joguinhos. Por que o Facebook ou os produtos da Apple não têm algo parecido? Por que ninguém pede por isso?

É preciso reconhecer que 1) somos fracos e caímos rapidamente na tentação dos joguinhos; 2) a indústria busca mecanismos cada vez mais viciantes, de maneira pouco ética e 3) a partir de um certo ponto, a diversão vira compulsão. Um “vício”, qualquer que seja, é efetivamente preocupante não só por causa das coisas que você faz por ele, mas pelas coisas que você deixa de fazer. Candy Crush foi divertidinho e desafiante pelas primeiras horas, mas depois ele simplesmente comeu horas que eu não tinha, atrasando o fim de um livro que eu estava empolgado e o meu trabalho. Eu reconheci meu problema e, no meio da autoanálise deste artigo, ele foi devidamente desinstalado do meu iPhone e iPad. Nada impede que eu o instale de novo ou jogue no Facebook, mas o fato de o ícone açucarado não estar no meu campo de visão quando pego os meus gadgets já elimina o “gatilho” do vício. Funcionou para mim.

Eu sou Pedro Burgos e faz 27 horas que não jogo Candy Crush Saga. E você?

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  1. Candy Crush Saga tem um mecanismo que alguém pode dizer que é saudável, de limitar a poucas, normalmente 5 “tentativas” (ou vidas): a cada meia hora você ganha uma nova tentativa para passar da fase, então é bom intervalar a jogatina, evitando maratonas comuns a outros tipos de jogos. Mas ele acaba gerando dois outros problemas: é possível ficar enchendo o saco dos amigos solicitando mais vidas (ou passagens para mais fases) ou, pior, pagar um dólar para um pacote com mais chances. O jogo é gratuito, mas é justamente explorando a impaciência e ansiedade (subprodutos do vício) que a produtora ganha dinheiro: movimentos extras e vidas extras, a 1 dólar cada, são os itens mais vendidos dentro do jogo. É claro que há ainda outra saída: a editora de tecnologia do UOL preferia usar o “cheat” de ficar offline e mudar o relógio do iPad. Mas eu poderia argumentar que isso só piora as coisas. ↩
  2. Pode soar ofensivo a quem joga essas coisas “sérias” como World of Warcraft a comparação com esses passatempos bestas de Facebook. Mas a lógica do vício é semelhante: há sempre um quest a completar, regras e recompensas bem claras (passar de nível! Completar a armadura!) mas, mais importante, o chamado loot (a recompensa por matar um monstro) é randômico: você sempre está a mercê da sorte – e a lembrança de recompensas aleatórias, de um golpe crítico a um tesouro raro, fazem você matar só mais um bichinho porque há sempre um micro-objetivo a um clique de distância. ↩

Texto originalmente publicado por Pedro Burgos em Oene

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