Uma Anne que diz muito – O Diário de Anne Frank

Anne Frank

24 de dezembro de 1943. Há mais de um ano Anne Frank e mais sete pessoas dividiam o Anexo Secreto: escondiam-se da guerra que acontecia lá fora, mas não podiam se privar do conflito interior, nem dos desentendimentos entre si. Era o dia seguinte ao Natal e ainda assim a pequena Anne borbulhava pensamentos que iam muito além de presentes que não chegariam e de enfeites ausentes.

Escrever. Esse foi o passatempo da menina judia e o que a deixou sã até o momento em que a SS encontrou-a. Costumava dizer que “o papel é mais paciente do que as pessoas” e dessa forma escrevia ali, em seu diário, o que o mundo poderia muitas vezes condenar. Nessa sexta-feira em especial, Anne misturou todos os seus sentimentos em alguns parágrafos. Lendo e me encantando com a sua escrita já muito avançada intelectualmente para os seus 14 anos me peguei concordando com a garota quando ela conseguiu fazer com que a ingratidão superasse o bom senso.

Anne Frank era uma adolescente, precisava viver, experimentar, conhecer, aprender com o mundo. Passou os seus últimos anos em um esconderijo com roupas que já não serviam mais, comidas a conta gotas e paciência esgotada. Dormia ao som de bombardeios e como a própria afirmou, era constantemente controlada pelas suas alterações de humor. Havia momentos em que era só Anne e os seus sentimentos e sensações. Então escrevia.

Mas voltando ao assunto da ingratidão, a garota fez um paralelo questionável: eles haviam tido sorte de encontrarem pessoas que os acolhessem e os abrigassem no período da guerra, se comparado aos outros judeus que estavam sendo torturados e mortos em campos de concentração; por outro lado, pensando mais em si, se perguntava quando iria ter uma vida novamente – andar de bicicleta, dançar, se sentir jovem e feliz. Quando se está presa e escondida, imagino o quanto o “eu” se aflora. A compaixão de Anne para com os seus que estavam sofrendo do lado de fora sempre foi visível, mas quando ela olhou pra si percebeu o quanto ainda estava guardando. Estava na metade do diário e por medo de incompreensão guardou os seus próprios sentimentos.

Os diários de Anne Frank no Anexo Secreto
Os diários de Anne Frank no Anexo Secreto

“Os sentimentos não podem ser ignorados, não importa que pareçam injustos ou ingratos”

Sorte de Anne Frank ter um papel para acompanhá-la. Ninguém a compreenderia, isso é fato. Mas ao mergulhar tanto no seu mundo introspectivo é involuntário fazer parte do seu raciocínio. Anne sentia muito tudo que a Alemanha, Inglaterra e o mundo estava sofrendo. Sentia ainda mais o que ela mesma estava passando. Não é egoísmo de sua parte, é apenas o resultado de um longo caminho ao lado de si mesma, convivendo com seu próprio eu, alimentando lembranças e expectativas num coração já sem esperança. Anne só queria viver, como todos os outros também – escondidos ou não.

O Diário de Anne Frank não é só um aprendizado do passado, mas, principalmente, uma viagem para dentro de um território pouco habitado e conhecido: o coração e a mente de uma vivente sensível durante a segunda Guerra Mundial. Os livros sobre Hitler vendem facilmente. A sua mente era um labirinto interessante de ser estudado. Ao seu oposto, temos Anne. Fácil. Aberta. Escancarada para o mundo, com seus medos, desilusões, esperança e uma fé que era cada dia mais abalada. São extremos que se chocam. Que nos chocam.

“Algumas vezes me pergunto se alguém um dia entenderá o que estou dizendo, se alguém deixaria de lado a minha ingratidão e não se importaria se sou judia”

Imagino que ela esperou por essa compreensão até o dia em que foi morta. Quem escreve nunca encontra alguém vivo para compartilhar o que sente e ser compreendido: o papel será sempre um amigo mais forte. No dia 24 de dezembro Anne Frank quis ser compreendida. Eu a compreendi. E, ao escrever, ela também.

“O fato de escrever me levantou um pouco das profundezas do desespero”