Foto: Henrique Pimentel / Musicão

Zeca Baleiro e seu chão de giz

No hall dos grandes baluartes da MPB acredito que exista um top 3 tão importante como a trinca de pirâmides do Egito, falo sobre as inexplicáveis Quéops, Quéfren e Miquerinos. Acredito que a ordem da trinca não possa ser especificada devido às costumeiras dúvidas do resenhista, mas inicialmente acho que formar um trio de atacantes com o Zé Ramalho, Tom Zé e o Jorge Ben não seria má ideia.

Esses são nomes que além de uma obra grandiosa, produtiva e extensa, são seres puramente complexos. Perceba que poucas pessoas fazem um cover desse ataque fulminante. E o motivo é bastante claro, as letras são complicadas, os timbres, climas e instrumentações regionais requerem muito mais do que vozes parecidas e coragem.

A postura de palco desses grandes mitos era capaz de fazer o Egito todo se curvar perante a grandeza desse som em puro frenesi de tributo às margens do Nilo! Não é qualquer um que tem a moral de subir no palco e implementar temas como “Errare Humanum Est” de maneira confortável. Sabemos que na voz do esotérico-criador fica lindo, mas no corpo de outra alma a coisa perde em naturalidade, algo primordial para o som continuar saindo de maneira orgânica.

Mas sempre existe uma exceção para com essas benditas “regras” e mitos, algo que tive a honra de presenciar no último sábado, data em que o sempre versátil Zeca Baleiro resolveu reviver seus tempos de “cosplay de Zé Ramalho” e voltou para a capital paulista para promover o lançamento do DVD “Chão de Giz”, um gloriosos tributo ao mito paraibano.

Foto: Henrique Pimentel / Musicão
Foto: Henrique Pimentel / Musicão

Line Up:
Zeca Baleiro (vocal/violão/guitarra)
Tuco Marcondes (guitarra/vocal)
Fernando Nunes (baixo)
Pedro Cunha (samples/teclado/sintetizadores/acordeon)
Kuki Stolarski (bateria/percussão)

Me direcionei para esse show, pois vejo Zeca imerso num patamar completamente diferenciado dentro dessa cena MPBista. É engraçado que ninguém pode falar mal da MPB, algo que estimula essa cena leite com pêra que cultua o xarope do Cícero e a disconexa Mallu Magalhães, mas que não escuta Lenine e deixa o Baleiro encostado.

E isso é um dos maiores crimes que se pode cometer, afinal de contas só quem conhece sabe: Zé Ramalho é difícil, poético, único e fragmentado. Se decorar a letra pra desafinar no ônibus já é complicado, imagine decorar pra fazer o show só com esse repertório! É mais embaçado que passar no ITA.

Foto: Henrique Pimentel / Musicão
Foto: Henrique Pimentel / Musicão

São nuances regionais sublimes, logo, é necessário uma banda excelente, algo que Zeca descolou tranquilamente. O maranhense domina a viola com um talento mundano e creio que seu intelecto seja um dos poucos que comportem a grandiosidade do mestre que foi homenageado… Além de sentir e cantar e tocar, é necessário entender, e esse malandro manja do riscado

Foram duas horas de um glorioso show. Foi diferente ver o cidadão mais “na dele” do que o habitual, mas isso é algo que a música do paraibano invoca. O som é bastante complexo e as letras não possuem o humor ácido que estamos habituados quando vemos Zeca mandando temas do baleiro, logo, se você for sacar essa tour, saiba que o show será excelente, mas que ele só vai mandar “Telegrama” no bis e que o set será dominado pelo faraó de nossa MPB.

Vale ressaltar também que a voz do ato principal em primeiro plano é de uma versatilidade absoluta. Não existe ritmo que limite seu trabalho, algo que adicionou novo requinte ao som deste tributo, respeitando limites, mas adicionando o próprio DNA criativo do intérprete, sempre num misto de ousadia e humildade grandiosa.

Foto: Henrique Pimentel / Musicão
Foto: Henrique Pimentel / Musicão

É bacana saber que existem músicos com essa noção… Precisamos de caras que criem e que recriem, que sejam responsáveis por uma renovação e por outra “re-renovação”, revelando temas antigos para uma nova safra que pode não ter toda essa gama de contato com compositores donos de obras tão extensas.

Zeca não choveu no molhado em nenhum momento, muito pelo contrário, o cara ainda pegou sons de lado B do mestre e tirou onda, sempre contando com uma bela lotação e com uma platéia que conhecia muito do repertório do mestre que dançava com borboletas. Foi um dia pra quem tem approach, a jam foi high tech, com um baixão sem economizar no groove, momentos de vocalista indiano relembrando Shankar na promoção de um insight. Foi cool, os presentes saíram orgulhosos e o Zé foi eternizado nos vales do rio sagrado em virtude de seu savoir a fair que virou DVD.