Carta para Chaplin, aquele filho da puta

Caríssimo Chaplin, após desidratar chorando em Luzes da Ribalta pela milésima vez, ter suspirado perdidamente com Luzes da Cidade e perceber que dentre todos seus personagens somos metade vagabundos e outra metade Monsieur Verdoux, resolvi lhe agradecer por ter ensinado o valor de um belo pontapé.

Eis minha metade vagabundo falando, mas minha metade Verdoux agradecendo. Sim, pois após um dia de trabalho é a hora de assumir a responsabilidade e, humildemente, lhe agradecer. Porém, antes de explicar preciso pedir desculpas por tê-lo chamado de filho da puta após me dar conta do seu mais precioso ensinamento. Sinto muito, Sir, dona Hanna não tem culpa de sua genialidade, muito menos da minha boca suja. Não vivi à beira da alienação, não passei fome, necessidades e precisei da caridade alheia. Não encarei processos judiciais e boatos pela imprensa. Em compensação, não sou um gênio de sua estirpe. Prova disso é a minha demora em entender por que esse gesto é tão repetido em seus filmes. Honras sejam dadas a André Bazin, que tão pacientemente me explicou o feito para que hoje eu pudesse dizer Eureka!

Seja contra um policial, uma madame ou algumas latinhas da sarjeta, seu pontapé mudou minha vida. Ele nada mais é do que o gesto mínimo de quem aprendeu a reagir, ligar o foda-se para algumas coisas. Quem nunca passou um perrengue que dance com os pãezinhos, não é, mestre? E como um pontapé é gostoso – menos quando a gente leva, aí dói -, ajuda a seguir em frente, a se livrar da chatice alheia e da nossa. Obrigada por mostrar que sempre existe uma reação, e ela é possível sem que a perna seja esticada para machucar o outro. Aqui o pontapé é um modo de vida. O jeito é um pontapé de nariz empinado, aprumo, e seguir adiante do jeito que queremos porque só existe uma coisa melhor do que dar um pontapé, é saber levar a vida. Mentira, existem duas coisas melhores que um pontapé: saber levar a vida e burlar algumas regras. Talvez, existam três, e aí incluiria saber levar um pontapé, daqueles de chorar, com elegância.

Seu vagabundo eternizado pela sétima arte questiona as regras, vive como pode, sobrevive com o que tem, ri da pompa alheia e da própria pobreza, toca no sagrado. É herói e anti-herói. É o autor do pontapé, que deveria ser usado por nós como modo de vida. Mas, assim como o judeu de O Grande Ditador, sonho com pessoas menos inertes e corajosas, dispostas a reagir ao invés de simplesmente aceitar a vida. Monsieur Verdoux, o canalha mais “humano” que já vi não desferiu pontapés, cá entre nós, ele era adepto de outros golpes. O chamo de humano porque assume não só os próprios erros, mas carrega os erros de toda a sociedade nas costas. Não sem antes jogá-los na cara de todos. Foi ele, Charlie, foi ele. Foi Monsieur Verdoux.

Seu canalha criminoso aprontou mais uma, jogou mais uma vez na nossa cara e, agora, meteu Carlitos na conversa. Sem mais delongas, lhe agradeço pelas cenas, pelas risadas, os socos no estômago que são suas críticas sempre atuais e, principalmente, pelo legado capaz de ensinar o que demorei anos para aprender. Realmente, às vezes, um pontapé é a melhor coisa que podemos fazer. Não vale a pena se agarrar a tudo, se preocupar, carregar o mundo e a culpa de tudo nas costas. Isso é coisa do Verdoux, não nossa.

Agora é hora de me voltar para o seu O Garoto. Após tantos palavrões e escamas caindo dos olhos cegos para a vida e o valor de um pontapé, melhor lhe (re) encarar em uma de suas obras mais puras e tomar meu protetor estomacal. Sei que nossas próximas conversas serão ácidas e menos chorosas. Sei também que muitos questionarão e até acharão graça em escrever cartas para quem está morto, mas meu caro, nós sabemos que eles só levam flores para os amados depois que percebem que ninguém dura para sempre. Eis o nosso pontapé! Tome um trago com o Bazin, onde quer que vocês estejam.

Com um riso e talvez uma lágrima, obrigada.