“Que horas ela volta?” e a realidade escancarada

A realidade escancarada e diária da relação entre empregadores e domésticas.

Que horas ela volta

Eu nunca tive empregada doméstica, tampouco babá. Mas já vi algumas passarem por minha família. E nos dias que eu podia presenciar essa relação, ela não era diferente da de Val (Regina Casé) com Fabinho (Michel Joelsas). “Que horas ela volta?” é o choque de realidade da família brasileira institucionalizada nos padrões que desprezam o amor, o respeito e igualdade. O filme dirigido por Anna Muylaert nada mais é que a dramatização de uma rotina que acontece em todos os lugares do país: a mãe pobre que deixou a família para cuidar de outra que não é sua.

Val é uma nordestina que foi tentar a vida de São Paulo e não vê a filha (Jéssica) há muitos anos. Ela trabalha na casa dos patrões “seu” José Paulo e “dona” Bárbara, família abastada da capital paulista. Até então, Val era quase da família. Bem tratada e respeitada, mas morando nos fundos da casa, num quartinho apertado, cheio de caixas para uma vida que o futuro um dia lhe reservaria. Uma mulher que aprendera desde cedo padrões ensinados por ninguém e só se deu conta disso quando a filha resolveu morar com ela para prestar vestibular.

Protagonizado por Regina Casé (Val) e Camila Márdila (Jéssica), mãe e filha foram privadas da convivência, não aprendendo, portanto, a pronunciar a palavra mágica: mãe. Seria fácil se o drama fosse ficção, mas a dedicação da doméstica à vida dos patrões não é uma novidade que acaba de ser estampada em filme. Val conhece os donos da casa como membros de sua própria família. O contrário já não se observa. A história da empregada doméstica, que cuidou do filho da patroa desde bebê, parece desconhecida ou pouco recordada. É a desimportância da classe menos abastada. É o mínimo contato permitido do lado de fora do portão.

Quando se é notório que Val é mãe de verdade e tem uma filha esperando, há anos, por um abraço, as coisas facilmente mudam de figura. A menina pobre, prestes a cursar vestibular, é tida, na boca de terceiros, como estranha. “Ela é muito confiante, decidida”. É a idealização de que a jovem que frequentou um ensino público de péssima qualidade não pode ser tanto quanto ela aparenta ser. “Não sou inteligente, sou curiosa”, Jéssica explica com sotaque nordestino carregado, logo reparado por Fabinho, que não perdeu a chance da piada.

regina casé que horas ela volta

A moça estranha, apaixonada pela leitura, foi pintada sem cores por patrões que não esperavam dela mais do que um prato limpo no final da noite. Aquela que cresceu sem a família descrita pela população brasileira conservadora, pois a mãe precisou visitar São Paulo para sustentá-la, engravidou na adolescência. E como quem contraria as leis de uma física humanamente inventada, passou na primeira fase do vestibular de Arquitetura na USP.

Agora uma quase uma universitária, Jéssica não se tornou melhor do que ninguém. “Eu não quero ser melhor do que ninguém, mas também não sou pior”. Com o fato inédito para a patroa Bárbara (Karine Teles), surpresa é a menor das reações. A maior delas é a humilhação, quando a filha da criada foi capaz de ser aprovada em uma universidade pública e o seu filho não. Sentimento esse que foi disfarçado pela seguinte frase: “o país está mudando”. A casa grande surta quando a senzala aprende a ler, já diria Totonho.

Mas das diferenças sociais, essa é a menor, diante da incompreensão de Jéssica, que não aceita, em hipótese alguma, o destrato para com a mãe e com ela mesma. Não foi ensinada a não poder fazer nada por ser inferior. Para Jéssica, ela não é superior a ninguém. Mas também não é inferior. Além disso, se recusa a esquecer o passado, os tempos em que a única pergunta que conseguia fazer era “que horas ela volta?”. Não aceitava, mas era capaz de amar a mãe novamente. “Um dia você vai entender tudo que eu fiz”, disse Val.

E ela entendeu quando precisou deixar o filho bebê nos braços de outra pessoa, para que pudesse construir um futuro para ela e para ele. Ela entendeu quando a saudade apertou e ela não podia mais voltar. Na verdade, não tinha como voltar. Ela interpretou muito bem, toda a história, quando descobriu que seu destino poderia ser mudado por ela mesma e que não há desigualdade social que desconstruirá um sonho. Ao som de Tom Jobim, nas Águas de Março, “Que Horas Ela Volta?” quer dizer duas coisas principais: mãe é mãe e ninguém deve esperar nada de ninguém.